Amizade
Sem Sinceridade?
Acredita-se ter encontrado
um meio de tornar a vida
deliciosa através da
bajulação. Um homem simples
que apenas diz a verdade é
visto como o perturbador do
prazer público. Foge-se dele
porque não agrada a ninguém;
foge-se da verdade que ele
enuncia, porque é amarga;
foge-se da sinceridade que
proclama porque apenas traz
frutos selvagens; tem-se
receio dela porque humilha,
porque revolta o orgulho que
é a mais estimada das
paixões, porque é um pintor
fiel que nos faz ver quão
disformes somos.
Não admira que seja tão
rara: em toda a parte (a
sinceridade) é perseguida e
proscrita. Coisa
maravilhosa, ela encontra a
custo um refúgio no seio da
amizade.
Sempre seduzidos pelo mesmo
erro, só fazemos amigos para
ter pessoas particularmente
destinadas a nos agradarem:
a nossa estima resume-se à
sua complacência; o fim dos
consentimentos acarreta o
fim da amizade. E quais são
esses consentimentos? O que
é que mais nos agrada nos
amigos? São os contínuos
elogios que lhes cobramos
como tributos.
A que se deve que já não
haja verdadeira amizade
entre os homens? Que esse
nome não seja mais do que
uma armadilha que empregam
com vileza para seduzir? «É,
diz um poeta (Ovídio),
porque já não existe
sinceridade.»
Com efeito, retirar a
sinceridade da amizade é
torná-la uma virtude
teatral; é desfigurar essa
rainha dos corações; é
tornar quimérica a união das
almas; é introduzir o
artifício no que há de mais
santo e a perturbação no que
há de mais livre.
Baron de Montesquieu, in
'Elogio da Sinceridade' |